Pedro Birindelli

Gerente em transforma??o digital e especialista em blockchain da Cosin Consulting

news

O tema criptomoedas inaugura mais uma polêmica: o projeto . Recentes declara??es do presidente dos EUA, Donald Trump, em seu Twitter, atacam o bitcoin e a Libra, uma nova moeda virtual anunciada há pouco pelo Facebook. O comentário de Trump aconteceu dias antes das audiências ocorridas este mês diante do Comitê Bancário do Senado e da C?mara norte-americana que discutiram aspectos legais do projeto. Para se ter uma ideia do ?nimo acirrado das discuss?es, um projeto de lei foi apresentado após as declara??es de Trump sob o título “Keep Big Tech out of Finance”. Certamente, esse ainda será assunto que ficará um bom tempo em evidência.

Mas, afinal, o que é este projeto? O que tem a ver com o bitcoin? Ou com o dólar americano? Quais os possíveis motivos que levam o governo dos Estados Unidos a atacar as criptomoedas?

No site oficial da organiza??o www.libra.org, é possível encontrar um vídeo introdutório que deixa explícito o objetivo do projeto em criar um novo sistema monetário global, desenhado para a era digital e que seja simples e rápido, sendo utilizado como meio de pagamento e transferência de valores entre pessoas do mundo todo, empoderado pelo uso da tecnologia blockchain, que conferirá ao sistema seguran?a e acessibilidade.

? importante ressaltar outros dois fatores desse projeto: o primeiro, a inten??o de lastrear a Libra (nome dado a criptomoeda resultante do projeto de mesmo nome) a uma reserva de ativos estruturada para que haja a preserva??o do capital e liquidez. De uma forma direta, estamos falando de um fundo de títulos públicos emitidos por governos estáveis que tenham um grande volume diário de negócios, com o objetivo único de prover baixíssima volatilidade para o sistema monetário Libra, garantindo assim que o valor de hoje seja o mesmo em uma semana, propriedade fundamental para a utiliza??o como meio de pagamento.

O segundo fator relevante é o modelo de organiza??o, baseado na associa??o de diversas empresas e agentes privados de todo o mundo, ou seja, apesar do Facebook estar na lideran?a do projeto, por intermédio da subsidiária Calibra, criada para esse fim, está muito bem acompanhado, tendo como associados gigantes que atuam em mercados como: meios de pagamento (Mastercard, Visa e PayPal); tecnologia e telecomunica??es (Vodafone, eBay, Spotfy, Uber), e ainda empresas de capital de risco, organiza??es internacionais e sem fins lucrativos e por fim institui??es acadêmicas.

Cabe destacar que o Facebook, apesar de estar liderando o projeto, terá os mesmos privilégios e obriga??es que os demais membros fundadores, durante a opera??o do sistema. A atual rede já tem um peso bastante importante, porém é previsto que esse grupo aumente ainda mais, chegando a cerca de 100 organiza??es até o lan?amento da plataforma, previsto para o primeiro semestre de 2020.

Muitos fatores operacionais desse novo sistema de moeda digital ainda n?o foram esclarecidos, principalmente pelo fato de ainda estar em desenvolvimento. No entanto, a partir do documento técnico disponível no portal, conseguimos desenhar o funcionamento básico da rede.

A melhor forma de entender como esse sistema funcionará é nomeando os agentes integrantes dessa complexa opera??o e o papel que cada um exerce:

Associa??o Libra, formada pelos membros fundadores

Esse agente exerce um importante papel no desenvolvimento de todo ecossistema, englobando a cria??o de toda tecnologia, a interlocu??o com as autoridades, tais como órg?os reguladores e governos, o desenho do modelo de negócio/opera??o e o aporte de capital, tanto para o investimento no projeto quanto para a forma??o inicial do fundo, que será o lastro para emiss?o das primeiras moedas.

Durante a opera??o do sistema, a associa??o terá a fun??o de emitir as moedas, validar as transa??es, gerir o fundo lastro e garantir a governan?a de todo o sistema. Com o amadurecimento da rede, é previsto uma redu??o da influência/dependência entre o sistema e esse agente, por meio de mudan?as no desenho da rede, principalmente no que tange o permissionamento.

Outros dois agentes fundamentais para que a transa??o ocorra s?o:

Pagadores e os recebedores que v?o interagir a partir de uma transa??o

Caberá ao pagador a obten??o da libra por meio da compra por moeda fiduciária, da troca por outra criptomoeda ou ainda pelo recebimento a partir de uma outra transa??o, além da posse de uma carteira virtual, software responsável pelo armazenamento das moedas e realiza??o do pagamento e recebimento.

Prestadores de servi?os - Exchange

· As Exchange autorizadas ser?o responsáveis pela distribui??o das moedas e direcionamento do capital para a associa??o Libra aplicar no fundo lastro.

· Também ser?o responsáveis pela liquida??o, atuando como marketplace entre quem quer comprar e quem quer vender a Libra e em última est?ncia entre quem quer vender e a associa??o Libra como compradora.

Prestadores de servi?os - Carteira

Um segundo prestador de servi?o é o fornecedor da carteira, que inicialmente será papel da Calibra, pertencente ao Facebook, permitindo transa??es a partir do Whatsapp e do Messenger, prometendo transa??es rápidas e com custos bastantes reduzidos.

Entendido o funcionamento do ecossistema do projeto Libra, podemos analisar as principais diferen?as entre a moeda Libra e o bitcoin, ou ainda qualquer outra criptomoeda existente.

Dois principais fatores tornam a Libra um sistema único no universo das criptomoedas:

1. As criptomoedas atuais ainda s?o de uso bastante restrito para meio de pagamento, seja pela complexidade, falta de confian?a, volatilidade ou restri??es técnicas de escalabilidades. O fato é que nenhuma criptomoeda tem um volume de usuários significativo frente a meios de pagamentos mais maduros. A Libra aposta no lastro para reduzir a volatilidade e no desenho da arquitetura tecnológica para solucionar problemas de escalabilidade.

Alguns poder?o dizer que existem outras criptomoedas que teoricamente s?o lastreadas, como, por exemplo, a Tether e solu??es como a lightning network do bitcoin que buscam aumentar a escalabilidade da rede. Portanto, se faz necessária uma análise um pouco mais profunda.

O lastro da Libra se difere pela ausência de paridade com qualquer moeda fiduciária, uma vez que é feita a partir de uma reserva de ativos emitidos por governos, com ênfase para o “s”, como dito anteriormente. E isso faz toda diferen?a, a diversifica??o do fundo é fundamental para reduzir a influência de um ou outro grupo econ?mico, dando flexibilidade para a associa??o gerir o fundo de forma a garantir a manuten??o do capital e estabilidade mesmo frente a crises, tornando assim a Libra, teoricamente, a moeda mais estável do mundo e reduzindo o poder de influência de qualquer governo no sistema, o que é fundamental para que seja uma moeda no ?mbito global.

Em rela??o a escalabilidade acredito que o principal fator está ligado a confian?a no sistema e n?o a tecnologia. A ado??o em massa da Libra é mais do que esperada, afinal esse sistema nasce de uma organiza??o que já possui 2,2 bilh?es de pessoas interagindo por meio de suas plataformas, sem contar as dezenas de milh?es de estabelecimentos espalhados por mais de 200 países das redes Visa e Master e os 180 milh?es de compradores ativos do eBay. ? um belo come?o rumo a uma estrondosa ades?o.

2. O segundo fator de diferencia??o é que projetos atuais buscaram interromper o sistema existente e/ou contornar os regulamentos, isso adiciona uma maior complexidade para a ado??o das criptomoedas, com inúmeros casos de discuss?es e atritos no ?mbito legal relacionado a criptomoedas. Segundo artigo técnico, a libra busca inovar nas frentes de conformidade e regulamenta??o para melhorar a eficácia do combate à lavagem de dinheiro trabalhando em colabora??o com os órg?os reguladores e especialistas.

Outros aspectos diferenciam essa plataforma das demais criptomoedas, como o estabelecimento de um padr?o global de identidade, necessário para que o sistema funcione dentro dos termos de regulamenta??o existentes de lavagem de dinheiro e a entrega de um nova plataforma de desenvolvimento de aplica??es, ou smart contracts, o que permite que as possibilidades de aplica??o dessa tecnologia sejam infinitas.

Caso os planos da associa??o Libra se concretizem, o impacto será gigantesco, come?ando pela quebra da hegemonia do padr?o US dólar como moeda global. N?o acredito em uma substitui??o, mas sim em uma nova op??o o que já é suficiente para irritar um governo.

A Libra n?o é a primeira e nem será a última iniciativa relacionada a criptomoeda a ser discutida no ?mbito governamental, porém se destaca pelo poder e influência de seus membros fundadores. A simples discuss?o do tema contribui para o amadurecimento do sistema junto as autoridades impulsionando todo o ecossistema das criptomoedas. Por mais libertária que seja a ideia original da criptomoeda, a regulamenta??o dos criptoativos é fundamental para a ado??o da tecnologia.

Impossível mensurar o impacto no mercado bancário mundial, porém podemos comparar com o impacto causado pelas empresas de tecnologia ao iniciarem a atua??o em mercados tradicionais como transporte, varejo, comunica??o, imprensa e mídia. A consequência imediata será a queda drástica nos pre?os praticados pelo setor, acompanhado por uma explos?o de novos servi?os.

A médio prazo, veremos uma enorme sinergia entre servi?os financeiros e demais servi?os consumidos pelas pessoas durante sua jornada cotidiana. Essa evolu??o se dará pela melhor utiliza??o dos dados financeiros gerados pelas transa??es, as possibilidades s?o inimagináveis.

Pelos pontos acima, acredito que o principal desafio para a implanta??o do sistema Libra é de cunho político, ao mesmo tempo tenho a convic??o de que a simples discuss?o do assunto junto a governos e autoridades será o principal benefício desse projeto, abrindo cada vez mais as portas para a implanta??o da tecnologia no que tange o sistema monetário.

Artigo originalmente publicado em:

Foto: Shutterstock